Na obra Romance de Formação: Funarte e política cultural – 1976 – 1990 (FCRB – 2000) a Doutora em Ação Cultural e servidora do MinC e da Funarte, aposentada pela Biblioteca Nacional, Isaura Botelho, narra que nos anos 1970 e 80 a Funarte empregava recursos para ações artísticas em parcerias “bem enraizadas nas comunidades (universidades, bandas, etc.)” e identificava “interlocutores legítimos e capazes de reprocessar as dotações recebidas em atividade cultural pulsante”. A consultora, pesquisadora e professora acrescenta que, ao observar documentos, pode-se “acompanhar, no cotidiano de trabalho dos técnicos e dirigentes, o esforço reiterado de encontrar, a cada nova transição de mando, as racionalizações capazes de justificar a continuidade da instituição”.
“Tendo sido reorganizada a partir dos anos 70, sob os auspícios da abertura política que começou a ser implementada pelo próprio regime autoritário, a área da cultura, em nível federal, foi constituída como um sistema pequeno e eficiente”… “O Ministro Jarbas Passarinho… da Educação e Cultura, percebendo a pouca atenção dada à área… resolve como que ‘resgatá-la’”. A autora diz que, conforme Roberto Parreira, criador da Funarte e seu primeiro diretor executivo , nisso “’não teria havido respaldo de nenhuma ideologia” ou teoria. Para Isaura Botelho, esse ponto teria possibilitado o “espaço que os técnicos do setor tiveram para construir não só uma política, como também instituições para conduzi-la”.
“A criação da Funarte foi resultado de um processo gradativo de transformação no quadro institucional existente no Ministério da Educação e Cultura, em 1975. Desta forma, ela herdou, em seu processo de construção, algumas características de programas que a precederam. A Funarte é filha direta do Programa de Ação Cultural – PAC – criado em agosto de 1973, vinculado à estrutura do Departamento de Assuntos Culturais do MEC e gerido por Roberto Parreira. Como objetivo primeiro o PAC tinha ‘a tarefa de levar a todos os brasileiros uma cultura acessível’. Com a diversificação de suas atividades e o grande aporte de verbas vindas do Fundo Brasileiro para o Desenvolvimento da Educação, o FNDE, o programa foi-se tornando maior e mais poderoso que o Departamento”. Botelho Lembra que, assim “pela primeira vez a cultura… tinha recursos dignos para o estímulo às suas atividades. […] Ele tinha […] e os órgãos existentes não”. E que o Ministério priorizou a realização de eventos sobre outras ações. Segundo Parreira, a iniciativa “transformou o ministério num […] empresário de espetáculos”, o que era, entre outras coisas, “questão de sobrevivência para o artista”.
O livro acrescenta que conflitos internos do MEC por verba levaram à diminuição de recursos do PAC e da queda do seu apoio para várias áreas artísticas; e lembra que a Política Nacional de Cultura (1975) previa a criação de uma entidade executiva, a ser vinculada ao MEC. Esta foi a Funarte. A obra narra como, embora houvesse a intenção de que a casa absorvesse “todas as áreas culturais” do Ministério, ela alcançava apenas música (popular e erudita) –, artes “plásticas e visuais” e folclore (este somente a partir de 78). Botelho lembra que a Fundação começou englobando o Instituto Nacional de Música (INM) e o Instituto Nacional de Artes Plásticas (INAP) e o novo Instituto Nacional de Folclore (INF) – em 78, convivendo com o Serviço Nacional de Teatro (SNT) e com a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB).
Um polo de ação cultural e incentivo financeiro
A obra descreve com detalhes a ação da Funarte em seus primeiros anos, com falas de gestores e servidores da casa – como a do PhD em Ciência Política pela Universidade de Chicago (EUA), Mário Brockmann Machado, professor titular da Fundação Getúlio Vargas (FGV), “participante ativo” no desenvolvimento da entidade e seu segundo diretor, sucedendo Roberto Parreira. Machado lembra que o órgão sempre foi “um centro cultural e também uma agência de financiamento para atividades culturais”. A autora destaca que se começou a planejar uma atuação maior da Funarte em nível nacional; que o orçamento para o programa de educação/cultura para extensão cultural com universidades foi importante para a consolidação da entidade; e para a ampliação de sua presença em outras regiões.
A consultora destaca que, como agência de fomento, a Funarte criou “mecanismos agilizadores” para aumentar o contato com instituições locais e ser uma articuladora entre elas “no sentido de viabilizar a execução de projetos comuns”; que foi designado um técnico de cada instituto para catalogar a “demanda externa”; e formado um grupo, que reunia a Assessoria Técnica (ATEC) e esses relatores, para formular ações. Estas incluíam projetos locais, através de pequenas consultorias e chancelas, as quais valorizavam essas iniciativas. O painel mostra que a estratégia contribuiu para a capilarização da Funarte no país e ajudou a alicerçar a entidade.
A autora registra um elemento como essencial: cada instituto criava seus próprios projetos e administrava seus recursos; e as propostas de fora eram avaliadas pelo diretor executivo, com parecer da ATEC, e atendidas com verba própria da Direção, com parecer das áreas. “Os institutos tiveram de gerir os recursos para essas demandas e a discuti-las com o colegiado”, diz a autora ao Portal da Funarte. O livro coloca essa medida como fundamental, pois, por causa dela, os institutos passaram a ter que dar mais atenção às propostas “externas”; e “os pareceres se tornaram muito mais consistentes, num diálogo com a política setorial’, declara Botelho.
Anos 80: a meta de expansão para fora do eixo Rio – São Paulo
O livro narra com minúcias o desenvolvimento da Funarte no começo dos anos 1980. Ela consolidou as primeiras propostas a grandes demandas, como o apoio a projetos externos e maior presença nacional, para atender a regiões fora do eixo Rio-São Paulo; criou parcerias com órgãos estaduais e com associações e empresas privadas, programas permanentes de arte-educação e de festivais e mostras, com universidades; e formalizou o “Trabalho Cultural em Municípios”. Os técnicos viajavam pelo Brasil, para levantar necessidades e acompanhar ações. Entre as medidas adotadas estava a criação do Grupo de Atendimento externo, com cerca de dez servidores ligados às várias linguagens artísticas, coordenados pela ATEC. O coletivo transformou-se depois em Comissão Intersetorial, colegiado que teria sido “o grande formulador de debate da política da Funarte”; e que iniciou uma integração entre os programas (originando uma visão estratégica global entre as áreas) e entre propostas “internas” e “externas”; e “se transformou num grande gerador de informações”). Esse processo teria sido a principal fonte de uma diretriz histórica da casa, o Documento de ação (1983), que pontua critérios de base para a Funarte. Provavelmente isso tenha sido essencial para a consolidação do papel da entidade no país (porque parece ser a diretriz originária dos padrões da casa).
Apoio público versus cultura como negócio
A autora observa que a Fundação foi criada para ser, em primeiro plano, uma agência de fomento. E situa a discussão sobre a controvérsia entre duas opiniões. Uma é a defesa do apoio público à arte, devido à sua importância para a identidade nacional (e hoje se fala também na diversidade cultural). A outra é a tese de que a cultura é um negócio como outro qualquer e, como tal, deve se autofinanciar e submeter-se às regras do mercado. A autora diz que, “Por detrás de ambas as posições está não só aquilo que se entende por arte e cultura”, como também a maneira como se vê “o grau de presença” que o Estado deve ter “na vida da sociedade”.
Enfrentando conflitos
O livro mostra algumas dificuldades fundamentais que a casa sempre enfrentou, tais como seu duplo papel de produtora ou de financiadora, que já embaraçava a concepção estratégica essencial da entidade. Outro inconveniente: o natural obstáculo para que se integrassem as várias divisões de áreas artísticas da casa (as quais desde aquela época, tentavam fortalecer seus interesses específicos, com direcionamentos distintos) e relata como a necessidade da “integração interna” já na época foi um diagnóstico importante, numa avaliação profunda, realizada em 1983. Uma questão diferente seria o contínuo desacordo entre dois perfis de servidores (fossem gestores ou subordinados): “especialista” (o que olha as coisas sob o ângulo de uma certa área das artes) e o “generalista” (o técnicos de planejamento, que busca formular estratégias de unidade para a organização – mas que pode não ter expertise em nenhuma arte, ou mesmo em cultura).
O Documento de Ação – um legado de missão e estratégia
O livro destaca o papel do Documento de Ação (1983) e transcreve sua introdução. Ela ressalta que o o trabalho é fruto de sete anos de prática. Diz que “foi elaborado pelo conjunto de técnicos da Funarte e reflete, portanto, o pensamento da instituição como um todo”; e explica: “…Trabalharam num primeiro momento todos os funcionários da casa…. cada setor indicou seu representante para levar à plenária as críticas e sugestões levantadas. Cotejadas e exaustivamente discutidas as diversas posições, chegou-se a um consenso capaz de permitir a uma comissão redigir a versão definitiva”. Numa “reflexão conjunta sobre a cultura” e suas políticas, o documento informa mapeia a estrutura da Funarte, “suas linhas de ação e seus critérios de atendimento”. A proposta é sedimentar um diálogo com “aqueles que, na verdade, representam sua razão de ser”: todos aqueles que “lidam com cultura”. Mas o principal objetivo era criar procedimentos nacionais, conhecendo “a realidade sobre a qual se deve atuar”; “estabelecer… prioridades de apoio”; e apresentar desafios e parâmetros para vencê-los.
Estes eram: “Trabalhar com um conceito abrangente de arte e cultura”; “Efetivar a incorporação das regiões definidas como prioritárias pelo MEC” (Norte, Nordeste e Centro-Oeste); e “Descentralizar a administração com o fortalecimento do poder decisório dos institutos e núcleos”. Mas a autora mostra que o Documento também colocou “metas políticas”: a saber: democratização e educação; e fixou seis “Linhas programáticas” de apoio: “ao fazer” – subdividida em “formação” e “pesquisa da qualidade dos materiais” para produção artística; apoio “à solução dos problemas profissionais”; “à infra-estrutura”; “à circulação do produto cultural”; “à reflexão” (pesquisa e debate); e “à documentação”. Botelho comenta cada ponto.
A época de declínio das instituições culturais
E é claro que a obra relata o extermínio dos órgãos federais de cultura, em 1990, pelo Governo Collor; a criação, no mesmo ano, do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura, encampando as antigas Funarte, Fundacen, e FCB; e a substituição, em 1994, do IBAC pela Funarte. Para Sergio Miceli, o livro mostra que as pressões políticas para criação do MinC e as correspondentes mudança de diretrizes do Governo, à época, foram abafando os direcionamentos dos técnicos da Funarte e enfraqueceram a instituição. Mas o cientista social tira uma possível conclusão da obra: “O declínio e posterior desmonte da Funarte têm muito mais a ver com o” seu “isolamento político […] em relação aos intelectuais e artistas do que com a fragilidade organizacional perante o Ministério da Cultura. De fato, ao ver da autora, “… quando Fernando Collor assumiu a Presidência da República, em 1990, já havia um terreno propício para o desmonte da estrutura”.
No último Capítulo, o livro descreve o itinerário da Funarte no período de 1983 a 1990, chamado de “Nova República”. Registra o reforço do Fórum Nacional de Secretários de Cultura nas políticas culturais do MEC; que eles iam diretamente aos ministros, o que enfraquecia as instituições de cultura; e comenta como isso influenciou na criação do MinC. Diz que, com a perspectiva do novo ministério ainda fraco, iniciou-se uma “disputa de poder” entre os órgãos vinculados à antiga Secult/MEC. Com o tempo, a ampliação dessa rivalidade pode ter colaborado para o abatimento dessas entidades, o que teria criado uma atmosfera propícia à sua extinção, por decreto.
“A partir de 1985, com a redemocratização do país, uma nova estrutura — o Ministério da Cultura — se superpôs ao desenho institucional anterior, fragilizando suas instituições e contribuindo para a desarticulação do trabalho realizado até então. Ou seja, já a partir de 1985, essa estrutura, que parecia ser estável e pronta para um crescimento, à medida que novas necessidades se impusessem, começou, na verdade, a se desgastar”.
Em contraste, a autora viu pontos positivos nas mudanças anteriores de estrutura ministerial: a criação de secretarias de cultura no MEC: “serviram de estímulo ao debate sobre políticas culturais e de desafio a uma maior profissionalização de seus técnicos. Por outro lado, esse distanciamento, visto num primeiro momento como perda de prestígio, garantiu a autonomia da política institucional, já que as divergências ocorriam em escalões mais baixos…. Porém, para a autora, a criação do MinC, “foi traumática e mudou os rumos” das entidades da área.
“… Na época da criação do Ministério da Cultura, os órgãos a ele vinculados eram os detentores do maior volume de informações e conhecimento especializado sobre suas respectivas áreas e sobre sua situação nos diversos estados. No caso de alguns deles, esta informação era mais significativa do que aquela acumulada nos próprios organismos estaduais”, pontua a pesquisadora. Ela acrescenta que, no caso da Funarte, isso era “considerável”, “sendo conseqüência direta da intensa circulação de seus técnicos pelo país” para acompanhar e assessorar projetos e outras instituições, “participando também de encontros e de debates locais”.
O contato com a comunidade artística
Sérgio Miceli enfatiza um ponto do texto, relacionado à “…natureza das ligações entre agências de promoção cultural como a Funarte com as diversas categorias de artistas, produtores e intelectuais “que constituem o grosso de sua clientela […]. A despeito da proximidade entre os técnicos da casa” e esses profissionais, “…por vezes se tem a impressão de que [suas]… demandas… “sofreram frequentemente a ingerência de diretrizes e orientações impostas pelos altos dirigentes do Ministério. E, o mais surpreendente, esse descompasso ia sendo sedimentado em meio às constantes redefinições dos objetivos institucionais, veiculadas pelas diversas concepções doutrinárias do que se entende por cultura”. O sociólogo argumenta no prefácio que, embora alguns estudos já tivessem apontado algo nessa direção, “a extremada dependência perante os ditames da política ministerial” acrescentaria um ingrediente repugnante ao quadro mostrado:
“Tudo se passa como se dois universos de experiência estivessem em confronto” na Funarte: “… de um lado, o trabalho de construção institucional tal como se manifesta nas práticas de gestão e produção culturais suscitadas pelos projetos em andamento e, de outro lado, os programas de metas e os documentos de cunho doutrinário, como que destilando as pegadas das concepções dos dirigentes”.
A asfixia da Funarte
As causas específicas para o enfraquecimento da Funarte no final dos anos 80, apontadas no livro (em especial no último capítulo), podem ser divididas em dois grupos: aquelas ligadas a dificuldades da casa em relação ao recém-criado Ministério da Cultura; e as causas internas. Entre as primeiras, destacam-se dez:
- Superposição de orçamentos e funções de secretarias do recém-criado Ministério da Cultura;
- Falta de feedback em relação às artes na elaboração das políticas do MinC, criadas com uma preferência pela articulação direta regional com secretarias, passando por cima do diálogo já construído pela Funarte com estas – e com os próprios produtores;
- Desvio de canais de debate com alguns produtores e artistas, ultrapassando a Funarte e indo diretamente ao Ministério;
- Desarticulação de investimentos em parcerias com outras instituições, apropriados por secretarias e fundações estaduais, por influência do MinC;
- Imposição, por parte do Governo, do deslocamento de propostas de arte-educação e similares para o MEC;
- Dificuldades para um relacionamento produtivo entre o Ministério e suas vinculadas;
- Diminuição de recursos, devido às crises econômicas;
- Identificação das instituições como “frutos do regime militar”, retirando-lhes peso político;
- Perda de espaço político dos servidores das instituições
- Descoordenação das políticas (ao contrário do que realizava a antiga Secretaria de Cultura do MEC).
Entre os principais motivos internos de abatimento da Funarte, sobressai outra dezena:
- Gestão excessivamente política, dissociada do saber técnico institucional e do diálogo com as classes de arte (inclusive as regionais), construído em muitos anos;
- Dificuldades de diálogo: interrupção do contato direto dos técnicos com as regiões, por progressivo corte de verba; falta de debate com novos atores sociais, emergentes na redemocratização do país – perda do “investimento no “olhar para fora” e no “conhecer a realidade” e na “presença nacional”, para “olhar para o próprio umbigo”; falta de diálogo com o MinC; e diminuição do “debate interno”;
- Falta de plano de carreira para os servidores;
- Descontinuidade administrativa nas ações, (a partir de 1985);
- Esvaziamento da assessoria técnica da casa e, também por isso, aumento da competição interna entre as áreas artísticas;
- Crise de função: aprofundamento do conflito entre os que defendiam papel da Funarte como realizadora de grandes programas (função já tradicional) e aqueles que entendiam a casa como patrocinadora e apoiadora de projetos externos – além do fato de que o aumento dessa divergência teria chegado a superar o esforço para valorizar a entidade na estrutura do MinC (ação essa que seria prioritária);
- Influência política na escolha de projetos a serem apoiados – segundo depoimentos;
- Problemas de administração: conflitos de gestão entre presidências e direções executivas; além de “gestões inoperantes”
- “Falta de liderança interna”
- Com tudo isso, “desarticulação e desmotivação internas”.
A autora argumenta que faltaram “diretrizes seguras” para defender a Funarte. Mas destaca: “O principal motivo do fracasso foi, no meu entender; o papel preponderante do jogo da política miúda que descaracterizou conteúdos, reduzindo o debate a uma disputa de poder interno” (na área de cultura federal).
Quanto à extinção por decreto das entidades culturais, em 90, a pesquisadora comenta que o presidente da República “Collor começou por um ‘enxugamento’ sem critério da máquina estatal, demitindo funcionários públicos e decretando o fim de instituições, no dia seguinte à sua posse entre estas, toda a estrutura federal de apoio à cultura, que teve também grande parte de seus funcionários demitidos” – o que não existe legalmente (tanto, que foram readmitidos mais tarde, por decisão judicial). “Esta experiência desarticulou o setor em nível de governo federal com repercussões que se fazem sentir até hoje”, Reflete Botelho.
Nesse capítulo final, ela identifica que, na época, a prioridade dada ao financiamento privado, por leis de incentivo, apontou para uma tendência política de retirada do estado da atividade cultural, coerente com o declínio de todos os órgãos de cultura, sua confusão administrativa e, enfim, extinção. Esta ainda seria em síntese, para a autora, uma “vingança pessoal de Collor contra a classe artística, que não o apoiara em sua campanha”.
“Seu ponto forte foi seu ponto fraco”: servidores, sua autonomia e sua carreira
“Vários estudos sobre a burocracia brasileira vêm demonstrando como… uma ‘autonomia relativa’ deste segmento dentro do aparelho estatal…, no período pós-64, lhe permitiu a formulação e execução de políticas públicas decisivas no plano econômico”, afirma Botelho, citando especialistas. Um deles, Gouvêa, conclui: “quanto mais distantes essas organizações estiverem do governo central, maior será a sua autonomia e a de sua burocracia. E seus “recursos de poder (políticos e financeiros) (…) vêm mais do sucesso de suas próprias ações do que do poder político central” (1994)”. A autora acredita que, “no caso da Funarte, esta autonomia tenha sido favorecida pelo fato de a área cultural… ser periférica não só no conjunto das políticas públicas governamentais como dentro do próprio” MEC. “Estando à margem… das políticas prioritárias”, esses “técnicos tiveram muito espaço de manobra para construir a instituição”. Seria como dizer que o ponto forte dos órgãos de cultura foi o seu ponto fraco.
“…Eles tomaram, a ferro e fogo, a defesa de seus princípios, nos momentos em que foram criadas as primeiras sobreposições” de secretarias do MinC, enfatiza. Mas a Funarte, à época de sua extinção, “não podia traduzir sua performance em rendimento economicamente mensurável, nem mesmo falar de uma adesão da sociedade para legitimar sua existência e crescimento”, observa Botelho. Ela percebeu, também que um fator para a debilitação da casa foi a sensível e progressiva perda salarial dos servidores; e sua falta de perspectiva de progresso funcional: “A falta de um plano de carreira que permitisse aos técnicos uma ascensão funcional que pudesse ser programada ou calculada é outro fator que, considerado determinante na postura funcionários com relação a seus compromissos institucionais” teria influenciado muito na debilitação da Funarte.
O papel do estado na cultura, novos caminhos e a participação social
A autora argumenta que os estudos da época sobre o papel do Estado na vida nacional “demonstram claramente que a formação histórica de cada país é fator determinante da forma de organização e aceitação de estruturas governamentais centrais de apoio à cultura”. “Nos países onde as organizações da sociedade civil realmente participam, defendem e estimulam as atividades artísticas e culturais, elas têm cumprido um papel decisivo para a permanência de instituições e projetos que julgam relevantes”. A autora considera que fica clara a importância de se ter a aliança de áreas com maior força política.
Segundo Isaura Botelho, para que a cultura possa se legitimar como algo fundamental na vida de um pais, é “imprescindível a criação de um sistema com canais diversificados de apoio (e não concentrado numa só estrutura de financiamento), que lhe permita uma sobrevivência um pouco menos dependente das crises político econômicas”. Para a autora, Isto significa dizer que “uma politica econômica que se queira eficaz”, precisa também dar uma atenção especial às parcerias com as diversas esferas públicas de poder; e ainda criar mecanismos “que estimulem o investimento privado, tanto de pessoas físicas quanto de pessoas jurídicas”.
“De fato, a experiência nos mostra que o que está em jogo não é propriamente a presença do Estado, mas o peso relativo da sua participação”, afirma. E argumenta que é fundamental o papel do Estado na área artístico-cultural, quer como financiador direto, quer como estimulador da sociedade. E propõe que os governos devam superar o “paternalismo”, o qual leva os produtores culturais a acomodar-se num modelo “fácil”, beneficiador do populismo, do clientelismo, até da “troca de favores”. Mas que “não se trata de o Estado retirar-se, mas sim de repensar sua atuação”.
Botelho lembra, ainda, a importância da articulação entre as legislações federal, estaduais e municipais na cultura para o sucesso de um sistema de incentivo ao setor.
Na conclusão, a autora salienta o fato de que não propôs que a antiga Funarte fosse modelo para o presente – pois as condições anteriores poderiam não se repetir –, mas que intencionou “considerar essa importante experiência passada para oferecer um exemplo que demonstra o quanto é possível, na área cultural, construir instituições, formar profissionais, identificar problemas e formular soluções conforme estratégias capazes de criar condições para uma produção contínua. Em suma, não há nada de errado, ou de pura especulação, no pensar a área cultural como passível de uma efetiva política pública. O equívoco é pensá-la como um setor onde cada dirigente recém-empossado se coloque como tarefa ‘inventar’ o campo da cultura a partir de um suposto ‘grau zero’, terra de ninguém que favoreceria iniciativas ‘inusitadas’, desconhecendo a complexidade dos problemas e dos processos já em andamento. Se meu estudo de caso tem uma pretensão, é a de alimentar, de alguma forma, o debate em torno das relações entre Estado e cultura, tematizando justamente as consequências de habituais improvisações grosseiras…”, argumenta.
Adiciona que não havia mudança substancial no painel retratado, mesmo no ano 2000; e que seria necessária a diversificação de fontes de financiamento para a área cultural, que implicariam em “estratégias de conquista da iniciativa privada” as quais dependeriam do poder público. Mas essas formas de fomento não necessariamente “contribuem para criar uma vertente estável de participação do capital privado”. Defende, ainda, atrair as pessoas físicas para o financiamento a projetos culturais – no que se antecipou estrategicamente aos atuais “crowdfundings”, ou financiamentos colaborativos, hoje praticados com sucesso na internet (“vaquinhas virtuais”) – uma verdadeira “profecia” pois, no ano 2000 nem se falava nisso.
Isaura Botelho termina o livro dizendo que “a área da cultura requer a presença do setor governamental através de uma política criteriosa que se veja refletida no sistema de instituições que compõem o ministério”; que o apoio financeiro governamental dá “suporte a atividades de médio e longo prazos que, por suas características, não dão retorno de imagem, a esfera governamental é a única que pode encarar o setor de maneira global, contribuindo para a existência de ações coordenadas”. Dessa forma, a presença estatal não só estimularia a produção artística, como também a valorizaria perante os investidores. Porém, sustenta que o Governo deva incentivar a organização da sociedade para que esta sugira e cobre medidas para projetos culturais – como já existe, há muito tempo, em outros países.
Leia mais sobre a autora*
Isaura Botelho participou, em Paris, de um programa conjunto da Faculdade de Direito e Ciências Políticas da Universidade da Borgonha (França) e do Ministério da Cultura francês, obtendo um Diplôme d’Études Supérieures Spécialisées (DESS) – Diploma de Estudos Superiores Especializados – , com tese sobre mecenato, em 1991. De 92 a 95, foi coordenadora do escritório da Funarte em São Paulo. Em 99, concluiu o Pós-doutorado no Département des études de la Prospective et Statisques (Departamento de Estudos Prospectivos e Estatística) do Ministério da Cultura da França, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), direcionado a área sócio-econômica da cultura. Dirigiu o Centro de Estudos da América Latina, do Memorial da América Latina, na capital paulista, de 2001 a 2003. Neste ano, voltou ao MinC, liderando a organização do Setor de Pesquisas e Planejamento da Secretaria de Políticas Culturais (SPC), até 2005. Publica artigos sobre política cultural em revistas especializadas e tem participado de livros; organizou, em parceria com José Álvaro Moisés, a obra Modelos de financiamento da cultura (Funarte), 1997. Também em São Paulo, coordenou curso no Centro de Estudos da Metrópole (CEM) – do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e da USP –, com o tema: “O Uso do tempo livre e as práticas culturais na Região Metropolitana de SP”. Em 2010, na mesma capital, geriu um grupo de pesquisa geral sobre a economia criativa, em torno do Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, conduzida na Fundação do Direito Administrativo (Fundap). Organiza e ministra cursos de especialização, extensão, qualificação e aperfeiçoamento de gestores culturais, em várias instituições nacionais e do exterior e a elas presta consultoria – entre as quais a Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, o Sesc – SP, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dedica-se a essa atividade desde 2010.
*Com informações da Plataforma Lattes
Obs.: as credenciais acadêmicas da autora foram citadas no artigo de abertura, aqui
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Entrevista de Isaura Botelho no Blog da Funarte SP
Acesse aqui o artigo de Isaura Botelho Dimensões da cultura e políticas públicas
Romance de Formação: Funarte e política cultural – 1976 – 1990
Isaura Botelho
Edições Casa de Rui Barbosa – 2000
Rio de Janeiro
ISBN: 85-7004-219-1