Bienal de Música Brasileira Contemporânea: entrevista com Flávio Silva

Flávio Silva. Foto: S. Castellano

A XX Bienal de Música Brasileira Contemporânea – considerada a mais abrangente mostra da Música Erudita Brasileira, ocorrerá no período de 27 de setembro a 5 de outubro, no Salão Leopoldo Miguez, da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e no dia 6 de outubro, no Theatro Municipal. Nesta entrevista, o responsável pela Bienal, Flávio Silva, musicólogo da Academia Brasileira de Música e coordenador de música erudita da Fundação Nacional de Artes – Funarte, realizadora do evento, fala sobre as novidades desta edição do evento e sobre o panorama da música clássica no Brasil.

Flávio, a Bienal desse ano contará com nove concertos: oito na Escola de Música da UFRJ e o último, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Quais são as novidades dessa XX Bienal?

Do lado dos intérpretes, teremos um septeto de violoncelos de Uberlândia (Minas Gerais) e dois conjuntos de São Paulo: o Quarteto Camargo Guarnieri e o duo Kontakte. As Bienais apresentaram pouquíssimas obras para órgão; nesta, serão duas: uma em diálogo com percussão, e outra com um conjunto de sopros. A OSB – Ópera & Repertório faz sua estreia na série. A grande novidade, porém, é a difusão dos concertos pela internet, e a divulgação dessa difusão junto a instituições musicais de todo o mundo, inclusive com informações bilíngues. Essa difusão é pensada como uma forma de apoiar a presença da música, do compositor e do intérprete brasileiro em escala global.

Quantas obras foram recebidas e em quais categorias foram divididas?

Foram ao todo recebidas 534 obras para o concurso, que aprovou 33. Se acrescentamos a estas as 39 obras encomendadas, temos 72 em estreia mundial, divididas em seis categorias: orquestras sinfônica, de câmara e de cordas; conjuntos de seis a dez intérpretes; conjuntos de três a cinco intérpretes, incluindo coro; solos e duos. As obras de música eletroacústica e acusmática aparecem nas três últimas categorias.

Qual a distinção entre as obras concursadas e as encomendadas?

De certa forma, todas as 72 obras são encomendas, pois o concurso também é uma forma de encomenda – só que indireta. No concurso, temos a entrega de partituras para serem analisadas por uma comissão de seleção, que seleciona as que considera mais apropriadas para serem premiadas. Quanto às encomendas propriamente ditas, elas são, em geral, feitas por escolha pessoal de dirigentes de instituições culturais privadas. Como a Funarte é um órgão publico, inventamos uma forma de encomendar obras a partir de uma eleição, onde 67 músicos, com participações expressivas em Bienais, indicaram, cada um, 10 nomes. As 670 indicações recebidas beneficiaram cerca de 90 compositores; somando os votos concedidos a cada um deles, chegou-se à definição dos 40 mais votados e que foram contemplados com encomenda de obra.

Como você vê a produção da música erudita atualmente no Brasil?

É muito interessante observar como jovens se interessam pelo estudo e criação de obras musicais que dificilmente dão algum ibope. As tendências são muito variadas; parece haver uma rejeição crescente a dogmatismos tradicionalistas ou vanguardistas, e isso é muito salutar. Antes, havia uma espécie de imperativo de defender idéias; agora, é como se fosse mais importante se expressar, utilizando os mais variados recursos possibilitados pelas diferentes estéticas e técnicas de composição.

Como ficou a distribuição geográfica dos compositores nessa Bienal?

Não há segredo, nem mistério, nem distinção ou preferência: onde há ensino e prática musicais sistemáticos e de qualidade, na área da música erudita, aparecem os compositores que se destacam. Na falta deste ensino e desta prática, o resultado só pode ser coerente com tal carência. São essas realidades que fazem com que as regiões Sul e Sudeste sejam as que mais compositores abrigam. No Nordeste, o ensino aprofundado de composição desenvolveu-se somente na Paraíba e na Bahia. Os quatro estados com maior quantidade de compositores apresentam características diferentes: a vida musical no Rio de Janeiro e na Bahia está centrada nas capitais; no Paraná e, sobretudo, em São Paulo, ela é mais descentralizada.

As Bienais, que começaram em 1975, em 2015, completarão 40 anos. Haverá alguma mudança comemorativa nesse ano?

A Bienal de 2011 já trouxe uma enorme mudança: pela primeira vez, todas as obras apresentadas foram pagas. Na de 2013, pode-se comemorar como uma nova vitória a difusão mundial das obras apresentadas pela internet, acrescida de intensa propaganda dessa difusão – pois não basta divulgar pela rede mundial: é preciso que os possíveis interessados saibam dessa propagação.

O ensino regular de música deveria fazer parte do currículo escolar?

O que foi proposto e decidido, salvo engano meu, foi a educação musical obrigatória. O grande problema será decidir o que essa educação significa, considerando-se a enorme extensão territorial do país e sua diversidade musical. Creio que o essencial seja a prática da música, a sua vivência e não o ensino de como ler uma pauta musical. As crianças primeiro aprendem a falar, e só depois é que são iniciadas à leitura; a educação musical na escola dispensa o ensino teórico de música. O que me parece mais importante, no entanto, é a prática de alguma atividade artística colaborativa. E nesse sentido, tanto a música como o teatro e a dança podem ser vistos como igualmente importantes para a sensibilização dos educandos, para o trabalho solidário, para o fortalecimento da atenção individual.

Qual a importância da realização das Bienais no panorama da música erudita nacional e internacional?

Até o momento presente, as Bienais têm uma importância muito mais nacional do que internacional. Elas incorporaram uma característica fundamental, que é a da recusa a qualquer sectarismo estético ou ideológico. Sua continuidade é, por si só, um fator de estímulo para a criação e para a interpretação de obras musicais novas. Além do mais, todos os compositores que delas participam são convidados para vir ao Rio de Janeiro assistir à apresentação de suas obras, o que permite encontros que dificilmente ocorreriam de outra forma. Volto a falar da importância da difusão via internet dos concertos das Bienais: agora, eles podem ser ouvidos em todo o Brasil, o que antes não ocorria. E como internet representa mundialização, só agora é que as Bienais podem passar a ter um real papel internacional na difusão das obras de nossos criadores.

Na XII Bienal – de 25 de outubro a 4 de novembro de 1997, o articulista Cláudio Cordovil escreveu no artigo Arte do ruído desafia ortodoxia musical, do Jornal do Brasil, do dia 3 de novembro, que “a nossa escuta ainda é débil e amestrada”. Ele assistiu à infinidade de inusitadas e instigantes “paisagens sonoras” de música eletroacústica apresentada. Escreveu: “trata-se de uma experiência para destravar portas da percepção outrora emperradas e é o sonoro a desafiar e esgarçar as fronteiras do musical”. Para ele, “a música eletroacústica atinge a alma em recantos banidos pela tradição musical, que acomodou ouvidos por dois séculos, que vão de Bach a Verdi”. Ele destacou o trabalho de difusão de Rodolfo Caesar, que “está para a mesa de som, assim como Glenn Gould está para o piano”. Vc concorda com essa leitura e ponto de vista, sobre a música eletroacústica?

Não gosto da idéia de que as pessoas tenham que se esforçar para seguir as especulações sonoras de A ou de B. A evolução do ouvido, tanto do espectador quanto do criador, se processava numa espécie de paralelismo. Nem poderia ser de outra forma: não era possível ser compositor sem ter público. O repertorio dos sons disponíveis em sistemas organizados para a criação musical sofria poucas mutações, e estas vinham num ritmo que facilitava sua aceitação e assimilação, possibilitando a criação de obras a partir de linguagens socialmente elaboradas e aceitas. É certo que, a partir do início do sec. XIX, as artes musicais se modificaram numa rapidez que não encontra paralelo em nenhuma outra época. Não há, porém, como comparar modificações trazidas por Debussy e Stravinski com as que passaram a ser possíveis a partir das manipulações propiciadas pelo tratamento eletrônico dos sons. No primeiro caso, as modificações, de alguma forma, se inseriam em sistemas já assimilados pelos ouvintes; quanto à música eletrônica, ela não era vinculável a nenhuma linguagem musical previamente conhecida e, sobretudo, vivenciada. As portas da percepção musical sempre foram sendo alargadas – mas aos poucos, ainda que com alguns sobressaltos. Não acho razoável pretender que as pessoas tenham que aceitar os experimentos com sons eletrônicos como sendo obras musicais, ao mesmo título que as elaboradas a partir de raízes solidamente estabelecidas e, sobretudo, vivenciadas. Mas o alargamento do material sonoro é irreversível e levou, inclusive, a novas formas de tratar os instrumentos musicais tradicionais na orquestra sinfônica. O que me parece importante é não acreditar em definições do que deva ser a música, ou de como ela deva ser. Prefiro a posição de meu professor Jacques Chailley que, numa polêmica com Pierre Boulez, dizia: “Parem de brandir um livro de receitas! Sirvam-me um bom prato!”. Já tive prazer auditivo com obras eletroacústicas; isso é o que me interessa.

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O evento é realizado pela Fundação Nacional de Artes – Funarte
Ministério da Cultura