Hermeto Pascoal aos 80: as lembranças do ‘Bruxo’ no Cedoc Funarte

Por Pedro Paulo Malta, coordenador do Portal das Artes/Canal Virtual

“Era uma vez, em Alagoas, um menino de 9 anos que ganhou do pai uma sanfona de oito baixos. Um menino que, como os outros, tomava banho de rio, era moleque, traquina. Mas, com a sanfona de oito baixos, o menino descobriu um mundo novo, o universo mágico o som.”

É assim, como num conto de fadas, que o jornal Ultima Hora (edição de 11 de outubro de 1978) descreve a iniciação musical um dos maiores artistas brasileiros: o compositor e multi-instrumentista Hermeto Pascoal, nascido há exatos 80 anos, no município de Olho d’Água da Canoa, no interior de Alagoas. A trajetória que construiu desde então é tema das matérias sobre “o Bruxo” – como é tratado pela crítica musical – que compõem seu vasto dossiê de impressos na Biblioteca do Centro de Documentação e Informação da Funarte – o Cedoc.

Matérias como a que o Jornal do Brasil publicou no dia 6 de março de 1979, assinada por Emília Silveira. No mesmo tom lúdico das aspas que abriram este texto, o próprio Hermeto relembra a infância no interior de Alagoas: “Lá, graças a Deus não tinha rádio. Só podíamos ouvir o som do mato. O barulho de chuva e trovoada. Os músicos de lá eram os grilos, os sapos e as corujas assustadoras e maravilhosas. Até 13 anos, meu gosto musical estava estritamente vinculado com a natureza.”A condição de albino fez com que não pudesse acompanhar os irmãos no trabalho na roça, como contou ao jornalista Chico Felitti numa matéria na revista Serafina (Folha de S. Paulo), na edição de março de 2014: “Eu ficava em casa ou embaixo de árvore. Fazia um pífano de jerimum para tocar para os pássaros. Ia pra lagoa e passava a tarde tocando água.”

Foi, porém, tocando instrumentos mais convencionais – como a já citada sanfona e o piano – que Hermeto iniciou sua carreira musical: primeiro no Recife e, a partir da década de 1950, no Rio de Janeiro. Já em São Paulo participou como flautista de um dos conjuntos mais virtuosos da música brasileira: o Quarteto Novo, formado em 1966, com Heraldo do Monte, Théo de Barros e Airto Moreira, inicialmente para acompanhar o cantor e compositor Geraldo Vandré.

“Depois, fui para os Estados Unidos, gravei lá e estou nessa de ficar um tempo por lá e outro aqui”, contou Hermeto à Ultima Hora, na edição de 11 de outubro de 1978. Entre os destaques das temporadas norte-americanas estão incontáveis apresentações do Leste ao Oeste, a amizade e admiração de grandes músicos locais (como Miles Davis) e gravações como a do belo álbum “Slaves Mass” (1976), em cuja instrumentação estão sons nada convencionais, como…grunhidos de porco.“A gente trouxe aqueles porcos afinadinhos, viajando de primeira classe, ganhando cachê, e deram o recado certo”, diverte-se o músico, como se lê na Ultima Hora (11/10/1978). “Olhe, conheço muito cantor que não tem aquela afinação. Felizmente, nos Estados Unidos não tem peste suína.”

“Este tipo de música que faço não é comercial, só dá pra comer e vestir razoavelmente”, explica-se Hermeto Pascoalem entrevista ao jornalista Tárik de Souza publicada na revista Veja, em 27 de setembro de 1978. O caminho musical construído à margem das regras do mercado, que até hoje é uma das marcas de sua trajetória, é justamente um dos segredos de seu sucesso – palavra, aliás, que nem sempre soa bem aos seus ouvidos. “Tenho horror desta palavra. Eu quero que vocês não falem mais que eu tenho sucesso”, disse o músico a José Alberto Correacomo podemos ler no Diário de São Paulo, edição de 13 de outubro de 1979. “Apenas estão começando a me enxergar. É um pequeno reconhecimento que está surgindo.”

Modéstia à parte, o sucesso de Hermeto Pascoal se traduz não só por sua discografia (segundo o sítio virtual do Instituto Memória Musical Brasileira, são 18 álbuns de carreira e outros quatro com o Quarteto Novo) como também pela legião de fãs que o acompanha em suas apresentações no mundo inteiro e pelo tamanho de sua obra de compositor. “Da última vez que contaram, eram 614 gravações, todas agora livres de direitos autorais”, escreve o jornalista Chico Felitti(revista Serafina, março de 2014). “Uma autorização assinada pelo artista em giz de cera, adereçada aos ‘músicos do Brasil e do mundo’, libera a regravação de qualquer música sua.”

Um desapego que pode causar espanto no contexto atual, mas que faz todo sentido dentro da trajetória brilhante desse músico, desde os tempos das trovoadas, do barulho de chuva, dos grilos e do pífano de jerimum.

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