Faltou pouco para que o tradicional Salão Leopoldo Miguez da Escola de Música da UFRJ, no centro do Rio, tivesse a sua lotação completa. O público, em grande parte formado por estudantes de música e de canto lírico, artistas da música e compositores, além dos amantes da ópera, foi receptivo à iniciativa da Fundação Nacional de Artes na apresentação da versão moderna para Medeia, o clássico da dramaturgia grega. A estreia mundial da ópera contemporânea foi na noite de quinta, 15 de setembro.
No palco, Doriana Mendes, soprano; Lorena Espina, mezzo-soprano e Adalgisa Rosa, contralto deram vida à princesa da Cólquida, região do Mar Negro, cuja história de paixão e infidelidade resulta no terror que marca a vingança executada pela protagonista com a morte dos próprios filhos. A complexidade dos sentimentos e conflitos contidos na personagem de Eurípedes foi dividida pelas três cantoras líricas que se alternavam na cena, num jogo que expunha a revolta e o ódio pela traição de Jasão, e a vergonha e a humilhação da princesa expulsa de seu próprio país, em consequência dos atos cometidos contra os seus, em nome da paixão desmedida pelo marido infiel. Os papéis masculinos couberam ao tenor Gustavo Quaresma (Jasão) e ao baixo-barítono Licio Bruno (Egeu).
O cenário minimalista trouxe para o palco poucos elementos – a tiara e o véu enfeitiçados com que os filhos de Medeia presenteiam a noiva do pai Jasão; o berço simbolizando as crianças e a inocência delas diante do transtorno da mãe; e uma estrutura metálica, como um falo gigante, de onde pendia uma enorme corrente, na qual a Medeia da vez era presa para narrar o seu martírio de mulher ultrajada.
“Eu gosto sempre de trabalhar com um máximo de redução possivel, justamente para não ter ornamentos e distrações, para o público entender a história”, disse o diretor cênico Marcelo Gama. “A gente trabalhou com a arquitetura do próprio espaço, criando o teatro de arena que era próprio do teatro grego. Invertendo, pondo os músicos para cima e trazendo os atores cantores para a área cênica na frente, que no teatro grego era chamada de orquestra, mas não era onde ficavam os músicos, era onde aconteciam as danças e as ações”, explicou. Marcelo Gama contou que, durante as três semanas em que duraram os ensaios, ele falava para os cantores que o cenário limpo era também para favorecer a atuação e a liberdade deles na encenação. “Isso aqui é um espaço com pouquíssimas referências em cima do palco, é só uma bandeja para eles se colocarem com a maior força possível”, completou.
O compositor Mario Ferraro, autor da música e do libreto em português da versão contemporânea de Medeia, falou que foi muito interessante o trabalho duplo – planejar a estrutura completa da ópera, a partir da pesquisa e da confecção do texto. Ele disse que foi muito bem recebido quando apresentou o projeto da ópera ao Centro da Música da Funarte. “O Flávio Silva, a Zezé Queiroz e o Marcos Lacerda foram muito receptivos, e eu só tenho muito a agradecer. Eu acho que é uma ideia, pelo que a gente pode perceber da receptividade do público e também de quem faz música e que cria e dos meus colegas compositores, de certa forma inovadora”. Ferraro, que também é o diretor artístico da Bienal de Ópera, destacou a relevância da Funarte na realização do evento. “Acho muito importante. A Funarte tem a sua tradição de apoiar música nova, os compositores novos, de música contemporânea, atual. É uma parceria perfeita, não poderia ter sido outra, e eu fico muito grato por isso.”
O compositor explicou como foi a construção da ópera na versão contemporânea. “A ópera é uma historia, geralmente uma narrativa por meio da música. É a música que conta a história. Você tem o texto, mas por si só ele não é completo, a música vem trazer a experiência da ópera. Eu costumo dizer e defendo a ideia de que ópera não é um espetáculo apenas, é uma experiência. Trazer Medeia, esse mito tão polêmico, quase um tabu, foi uma aventura e continua sendo para todos um desafio muito grande.”
Mario Ferraro disse que escolheu a tragédia de Eurípedes por ser Medeia um tema tabu, pouco explorado no meio da música. ‘Sabe-se que Medeia é a tragédia grega mais encenada no mundo, mas musicalmene são poucas as traduções, as versões musicais. E aí eu quis cair para esse campo pouco explorado e fazer todo o texto em português, que tem tido uma receptividade muito boa. Os cantores estão tendo uma satisfação enorme e estão demonstrando isso, um sentimento de gratidão pelo projeto, a oportunidade de estar apresentando uma ópera brasileira, cantada em português, estreando mundialmente. E sabe-se lá que caminho que essa Bienal de ópera vai trazer. Só o fututro vai dizer. Eu acho que vai pegar.”
Mario Ferrero é autor de The Moonflower estreada no festival de óperas contemporâneas, em Londres, em 2011, e de Ahaiyuta e o Comedor de Nuvens, ópera para crianças em estado terminal, apresentada em hospitais de Londres em 2013, e que ele quer trazer para o Brasil, pois já tem a versão em português.
Flávio Silva, coordenador de Música Erudita da Funarte presente ao evento, falou sobre as duas óperas apresentadas na Bienal da Funarte. “Foram dois roteiros, duas ideias, dois princípios diferentes. Tem uma tradicional que é a do Mambembe Encantado, que transcorre dentro de uma linguagem com um nacionalismo bastante diluído, sem folclorismo, mas com traços de Nordeste, e um enredo com movimentação mais dinâmica. E essa (Medeia) com um assunto altamente dramático, dentro de uma linguagem que não tem essas facilidades do Mambembe, mas que pela reação do público funcionou muito bem. Eu não sabia o que nos esperava, só depois que cada uma aconteceu, e acho que foi uma ótima iniciativa. E espero que possa continuar, fazendo experiências novas, abrindo perspectivas para outras óperas nesse formato, que é bastante confortável, com poucos instrumentistas, poucos cantores até para poder viajar pelo país. Poder multiplicar as apresentações pelo país”, finalizou.
O púbico que compareceu à estreia de Medeia aplaudiu elenco e músicos por longo tempo, aos gritos de “bravo!, bravíssimo!”. Aplausos que também foram estendidos ao autor Mario Ferrero e à equipe de produção que subiu ao palco no fim da apresentação.
No sábado, dia 17, às 19h30, será apresentada a última récita de Medeia, na Escola de Música da UFRJ, Rua do Passeio, 98, centro do Rio. A entrada é franca.